Publicado originalmente no site Página 22, em 25 de julho de 2017.
Ameaças da revolução digital ao desenvolvimento sustentável
Por Ricardo Abramovay *
Além de estimular os excessos do consumo, o progresso
tecnológico contemporâneo põe em risco a democracia, ao concentrar o controle
da informação
A revolução digital é responsável por algumas das mais
importantes e promissoras realizações rumo ao desenvolvimento sustentável. A
energia solar deverá responder por quase um quarto da geração global de
eletricidade em 2040, chegando a 29% do total em 2050, segundo importante
relatório recente. O mesmo relatório prevê que os carros elétricos serão 35% do
transporte rodoviário individual em 2035 e dois terços do total em 2050. Estes
são apenas dois exemplos, mostrando a ciência e a tecnologia como condições
necessárias para que se altere de forma radical a maneira como as sociedades
contemporâneas usam a energia, os materiais e os recursos bióticos dos quais
dependem. Mas, nem de longe, são condições suficientes.
O rumo do progresso tecnológico contemporâneo ameaça os
valores básicos do desenvolvimento sustentável em ao menos dois sentidos. O que
está em jogo é o cerne do crescimento digital dos últimos dez anos, expresso na
inteligência artificial, na computação em nuvem, no aprendizado das máquinas e
na utilização sistemática e gratuita, por parte dos gigantes digitais, da massa
de dados que cada um de nós lhes oferece involuntariamente e que são a base de
sua riqueza e de seu crescente poder.
É com base no rastreamento e na capacidade de analisar e
mimetizar as informações transmitidas à rede por meio dos mais diferentes
dispositivos digitais (mas, sobretudo, pelos smartphones) que se aperfeiçoam os
sistemas de reconhecimento facial e de voz, as traduções e, sobretudo, o
conhecimento minucioso e individualizado dos comportamentos, das opiniões, das
reações e das aspirações das pessoas. E aqui reside a primeira ameaça ao
desenvolvimento sustentável.
Ficou célebre a tirada de John Wanamaker (1838/1922),
considerado o pioneiro do marketing contemporâneo: “Metade do dinheiro que eu
gasto com publicidade é desperdiçada. O problema é que não sei qual metade”.
Desde o surgimento dos smartphones em 2007, essa ignorância foi em boa medida
superada e, cada vez mais, a publicidade vem deixando de ser genérica e
converte-se em mensagens individualizadas e customizadas.
Mais que mudança na publicidade, a inteligência artificial
está dando lugar à emergência do que o recém lançado livro de Erik Brynjolfsson
e Andrew McAfee chama de economia de plataforma e cujos exemplos mais notáveis
são o Uber, o AirBnb, a chinesa Alibaba, o Waze e todas as que crescem não
pelos ativos materiais de que dispõem, mas pela capacidade de utilizar a
internet para reunir sob seu comando uma quantidade crescente de atividades
econômicas e de serviços. As plataformas respondem a uma lógica segundo a qual
o vencedor leva tudo: se na sua cidade houver seis serviços semelhantes ao
Waze, dificilmente algum deles poderá funcionar.
A agilidade das plataformas e o conhecimento individualizado
das demandas de consumo de cada um de nós resulta numa capacidade inédita de
pressão para ampliar o consumo. Com isso, não só o valor das
empresas-plataforma tende a aumentar (tanto mais quanto maior for sua difusão),
mas, com ele, o próprio consumo.
A chinesa Alibaba, que não detém estoques, frotas de
caminhão e outros ativos típicos dos atacadistas convencionais, atende 300
milhões de pessoas por mês e vale hoje mais que a Walmart. Na celebração
chinesa do Dia dos Solteiros (11 de novembro de 2016) a Alibaba vendeu quase
US$ 18 bilhões, três vezes o total combinado do Black Friday e do Cyber Monday
nos Estados Unidos.
A segunda ameaça aos valores básicos do desenvolvimento
sustentável representada pelos rumos da revolução digital nos últimos dez anos,
é fundamentalmente política. A pergunta que dá título a um artigo recente de
John Elkington não poderia ser mais pertinente: “Google poderia tornar-se
Deus”? Não se trata apenas de seu impressionante poder econômico e dos impactos
deste poder sobre a concorrência. O mais importante é o conhecimento e, a
partir daí, o controle sobre a própria vida dos indivíduos a que as tecnologias
digitais contemporâneas estão dando lugar.
Mas será razoável, e compatível com a própria democracia,
que uma empresa privada detenha de forma tão concentrada o controle e a
capacidade de manuseio dessas informações? Responder a esta pergunta exige que
se discuta a proposta do especialista Evgeny Morozov: “Todos os dados de um
país deveriam estar em um fundo de dados, do qual todos os cidadãos seriam
proprietários… Quem quiser construir novos serviços a partir daí terá que
fazê-lo em um ambiente competitivo, altamente regulamento e pagando uma parcela
de seus lucros por usá-los”.
Pode parecer tímido, mas seria o início de uma transição
significativa para democratizar a sociedade da informação em rede e, portanto,
para o desenvolvimento sustentável.
* Ricardo Abramovay é professor sênior do Programa de Ciência
Ambiental (Procam) do Instituto de Energia e Ambiente da USP – www.ricardoabramovay.com
@abramovay
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