Diego Quijano (Con Fotografia de Getty)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 10 de março de 2020
Há governos que querem desconectar seus cidadãos da
Internet, e alguns já têm seu botão vermelho.
A web está deixando de ser global. China, Rússia e Irã, entre outros, usam sua infraestrutura digital para vigiar e censurar seus cidadãos. Bem-vindo à ‘balcanização’ da Internet
A web está deixando de ser global. China, Rússia e Irã, entre outros, usam sua infraestrutura digital para vigiar e censurar seus cidadãos. Bem-vindo à ‘balcanização’ da Internet
Por Marta Peirano
Na Davos de 1996, o visionário John Perry Barlow já dizia
aos “Governos do mundo industrial, cansados gigantes de carne e aço”, que
deixassem a Internet em paz. Sua famosa Declaração de Independência do
Ciberespaço estabelecia: “O espaço social global que estamos construindo é por
natureza independente das tiranias que vocês procuram nos impor. (…) Seus
conceitos legais sobre propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto
não se aplicam a nós. Eles são baseados na matéria”. A Rede queria ser livre, e
os protocolos TCP/IP, a cola universal que unia todas as suas peças, haviam
sido projetados para que as informações encontrassem sempre o caminho mais
curto, mais seguro e mais barato para alcançar seu destino, alheios às
fronteiras políticas e geográficas do mundo “real”. Desde então, sua ânsia de
liberdade se deparou com diferentes graus de resistência dos Governos, que
costuma administrar a expressão de dissidência com apagões seletivos, leis da
mordaça e campanhas de propaganda ou desinformação. Uma nova estratégia se
configura este ano: a independência. No final das contas, a Internet era sim
matéria e começa a se desintegrar.
Apenas dois dias depois de a Internet completar 50 anos, em
29 de outubro, a Rússia declarou sua independência com uma lei de soberania
digital. A legislação autoriza seu regulador de telecomunicações local a
bloquear conteúdos, serviços ou aplicativos que considere uma ameaça à
segurança do Estado, sem ordem prévia, processo ou notificação. Os critérios
sobre o que constitui uma ameaça são tão opacos quanto seu plano de execução. E
o conteúdo parece ser a Internet como um todo. A lei contempla a necessidade de
um botão vermelho para bloquear a Web quando incomodar e um sistema próprio de
gestão de domínios para “proteger os cidadãos russos de serem contaminados por
conteúdos tóxicos” e a sua infraestrutura de ataques cibernéticos no exterior.
O sistema de gerenciamento de domínio, ou DNS, é o que diz o
que cada coisa significa na Internet, o diretório administrativo que conecta o
nome de um site (exemplo: brasil.elpais.com) ao endereço IP do servidor em que
se hospeda fisicamente o conteúdo ao qual está associado. É um dos pilares
fundamentais da rede globalizada e foi criado em 1983 como um sistema
hierarquizado, descentralizado e global. Com um sistema próprio administrado
por seu Governo, os cidadãos russos não poderão mais usar redes privadas virtuais
(VPNs, na sigla em inglês) para acessar conteúdos controlados ou se comunicar
com o exterior.
BRICS, o supergrupo
A Rússia não está sozinha no caminho da autodeterminação
digital. “Devemos respeitar o direito de cada país de governar seu próprio ciberespaço”,
declarou o presidente da República Popular da China, Xi Jinping, durante a
Segunda Conferência Mundial da Internet, em Wuzhen, em 2015: "Nenhum país
deveria buscar a ciberhegemonia ou interferir em assuntos internos de outros
Estados”. A China não possui seu próprio DNS, mas a famosa muralha digital
chinesa propiciou um sistema de crédito social baseado na vigilância e punição
de seus cidadãos e, também, a expansão de suas três gigantes tecnológicas:
Baidu, Alibaba e Tencent. E a do WeChat, um aplicativo que faz tudo (reúne as
funções do Facebook, Instagram, Uber, Tinder, YouTube e Skype, entre outros) e
serve para pagamentos com o celular e até dar esmolas para os sem-teto. É
inegável que o modelo soberanista serve de incentivo para a economia local. A
crise do coronavírus, por outro lado, é uma lição sobre suas consequências.
Li Wenliang, o oftalmologista do Hospital Central de Wuhan
que primeiro denunciou a irrupção da epidemia, foi silenciado pelas autoridades
e detido em 1º de janeiro por “disseminar rumores maliciosos” na Web. Sua morte
no mesmo hospital, no dia 6 de fevereiro, mostrou que a densa rede de
vigilância chinesa não servia para conter a propagação do vírus, pelo
contrário. Naquela manhã, uma hashtag começou a se destacar no Weibo, a versão
local do Twitter: “Exigimos liberdade de expressão”. À tarde tinha sido
eliminada pelo regime. O coronavírus segue sua expansão letal, mas não haverá
outra Tiananmen.
“A China está construindo sua própria Internet focada em
seus próprios valores e está exportando essa visão da Internet para outros
países”, lamentou Mark Zuckerberg em seu recente discurso de Georgetown. “Há
uma década, quase todas as plataformas da Internet eram americanas. Agora, seis
das dez primeiras são chinesas”. Em 2018, o cofundador do Google, Eric Schmidt,
havia alertado em um evento em San Francisco: “A grande muralha da China nos
levará a duas Internets diferentes: uma asiática, dominada pela China, e outra
ocidental, dominada pelos EUA". Nos últimos meses, o Conselho de Segurança
da Federação Russa também anunciou a criação de uma “infraestrutura de rede
independente”, junto com a China, o Brasil, a Índia e a África do Sul, o
supergrupo de grandes economias emergentes conhecido como BRICS. Se for levada
adiante, essa outra Internet ocuparia 25% da superfície planetária e serviria a
mais de 40% da população mundial.
“Na verdade, esse espaço utópico e cosmopolita nunca
existiu”, explica por email Evgeny Morozov, ensaísta bielorrusso e autor de The
Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom. “As teorias que formaram nossa
percepção da Internet --a aldeia global, o ciberespaço sem lei, o internauta
como um cidadão desvinculado do Estado nacional-- estão muito longe da
realidade”, acrescenta. “Era um pouco como acreditar que o mercado universal,
uma vez alcançados todos os cantos do mundo, teria um efeito homogêneo em todos
os lugares.” De fato, vários dos países que abriram a década com a explosão de
otimismo da primavera árabe a encerram com apagões, repressão e censura. A
Internet não é apenas matéria, mas pode acabar sendo como as reservas de
petróleo; em princípio, deveria melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, mas,
quando brota nas democracias mais frágeis, transforma-se em maldição.
O bloco halal
“Observando os dados, não vemos uma incidência maior no
número de bloqueios, mas em sua magnitude e gravidade", explica Alp Toker,
diretor da Netblocks, uma organização que observa os bloqueios, restrições e
ataques cibernéticos em tempo real. A Índia tem o recorde de apagões, com 134
cortes em 2018, e a Caxemira está sem Internet desde agosto de 2019, exceto por
uma centena de páginas que o Governo indiano desbloqueou há três semanas. O
Paquistão vem logo atrás, seguido pela Síria e a Turquia. Mas a incidência mais
notável ocorreu em 15 de novembro, quando o Irã bloqueou o acesso à Internet a
97% de sua população.
O Irã fez isso no momento em que começaram as manifestações
em massa por causa do aumento do preço do combustível. Exceto por algumas
contas do Governo, foi um blecaute total (Internet, telefone, dados, SMS). Um
evento sem precedente. Embora tenham ocorrido milhares de apagões, nunca um
país inteiro havia saído da Rede. Enquanto a mídia tenta verificar durante o
apagão o número de mortes que ocorreram nos protestos, os engenheiros tentam
elucidar como conseguiram retirar da Internet 80 milhões de pessoas de uma vez.
O fato é que o Governo trabalha há anos em uma Internet halal, alinhada ao
islã: a National Information Network. “O país não tolera uma rede social que
tem sua chave nas mãos dos Estados Unidos”, disse o aiatolá Ahmad Khatami há
dois anos.
Obviamente, existe um nicho de mercado para uma Internet
muçulmana. Para além dos valores religiosos, segundo Katherine Maher,
diretora-executiva da Wikimedia Foundation, há mais de 350 milhões de pessoas
que falam árabe no planeta, mas seu idioma ocupa menos de 1% da web. Em 2016, a
start-up malasiana Salam Web Technologies lançou um navegador restritivo
alinhado aos valores islâmicos, chamado SalamWeb, que atende usuários da
Malásia e da Indonésia, mas quer expandir-se por todo o mundo islâmico. Inclui seu
próprio agregador de notícias, rede social e sistema de mensagens, o SalamChat.
“Isso não é necessariamente ruim. Ter a própria infraestrutura pode promover um
ecossistema econômico próprio e introduzir alternativas locais às plataformas
multinacionais”, diz Toker. E acrescenta: “Mas quando isso é feito às custas da
conectividade mundial, é um problema de direitos humanos e liberdade de
expressão. E não há ninguém vigiando. Estamos tão focados em nossos debates
internos que o ecossistema digital está se decompondo e com ele a possibilidade
de debate mundial”.
Uma nova guerra fria
Há aspectos do divórcio que transcendem o colonialismo
cultural, a perda de diversidade e a polarização do debate. De acordo com o
relatório do Oxford Internet Institute sobre propaganda e desinformação, o Irã
é um dos sete países que implementam operações de influência estrangeira, junto
com China, Rússia, Índia, Paquistão, Arábia Saudita e Venezuela. Sua relação
com a guerrilha digital é intensa e pós-traumática: foi o alvo do primeiro
ataque cibernético projetado para destruir a infraestrutura industrial. O
Stuxnet foi um vírus insidioso que destruiu mil centrífugas em seu centro de
enriquecimento de urânio em 2010 e abriu um mundo de possibilidades
aterrorizantes para a guerra cibernética. De acordo com o arquivo de documentos
de Snowden, naquele momento o Irã era o país mais vigiado do mundo, tanto pelos
EUA quanto por Israel.
O Irã aprendeu a lição: a Rede Global permite causar muitos
danos com poucos recursos. Agora, o país “tem a capacidade e a tendência de
lançar ataques destrutivos”, declarou recentemente Christopher C. Krebs,
diretor de segurança cibernética e infraestrutura do Departamento de Segurança
Interna dos EUA. “É preciso ter a consciência de que qualquer ataque poderá ser
o definitivo”, acrescentou. Sua divisão lhe atribuiu muitos ataques, incluindo
o dos seis principais bancos dos Estados Unidos. O malware iraniano destruiu
35.000 computadores da companhia estatal de petróleo Saudi Aramco em 2012.
Foram necessários dezenas de milhões de dólares para reconstruir o sistema.
Desde então, especializou-se em atacar infraestrutura industrial --um terapeuta
chamaria isso de compulsão de repetição-- entre os vizinhos mais próximos, como
sua arqui-inimiga Arábia Saudita.
“A segurança é um espaço multidimensional no qual diferentes
objetivos e diferentes atores competem”, explicou David D. Clark,
arquiteto-chefe da Internet nos anos 80 e autor do recente e imprescindível
Designing an Internet, em uma conferência na sede do Google há pouco mais de um
ano. “Para construir uma Internet segura, você deve firmar um compromisso pelo
qual todos e cada um dos atores desejem que a sua solução sobreviva”,
acrescentou. Mas o que acontece quando esse compromisso desaparece e duas visões
antagônicas ocupam o seu lugar?
Proteger-se do outro
“O Irã é um dos atores mais sofisticados", diz por
telefone Bruce Schneier, autor, consultor e um dos maiores especialistas em
segurança cibernética. “Ataca empresas, ataca bancos, ataca usinas elétricas,
ataca indivíduos. Mas não acho que a balcanização seja principalmente um
problema de segurança, acho que o principal problema é de controle e
propaganda. A Rede global acabou. Isso já é ruim o bastante.” E complicado.
Como se gerencia o divórcio quando a infraestrutura de uma das partes ocupa
grande parte da outra? Como nos protegemos de uma China que se torna
independente da mesma Rede que depende do 5G da Huawei? “Bem, teremos que ver
como isso se desdobra”, ironiza Schneier. “Como não há um ditador da Internet
capaz de impedir esse tipo de coisa, tudo pode acontecer.”
Entre os especialistas, há nuances. “No momento, o que estão
criando são Internet separáveis, e não separadas”, explica Ángel Gómez de
Ágreda, coronel da Força Aérea espanhola, ex-chefe de cooperação do Comando
Conjunto de Defesa Cibernética e autor do recente Mundo Orwell: Manual de
Supervivencia para un Mundo Hiperconectado. “Isso nos prejudicará no
crescimento porque vai fraturar os mercados e, do ponto de vista da segurança,
é o equivalente ao escudo antimísseis: ‘Eu posso atirar em você, mas você não
pode atirar em mim.’ Estamos criando um mundo medieval, de castelos, onde as
vulnerabilidades de uns e de outros serão diferentes.” Entre os dois modelos
antagônicos da Rede --global e soberano--, um espectro de países parece não ter
voz nem voto nessa separação. "Nós estaremos com o padrão americano e isso
não significa que seja perfeito." Permaneceremos no bloco de uma Rede
dominada por plataformas comerciais, um modelo de negócio baseado na exploração
maciça de dados que produziu sua própria família de patologias.
“É fácil atacar a ideia da balcanização da Rede argumentando
que os maus querem controlar a Internet. Mas, o que aconteceria se fossem os
países democráticos, como aconteceu com o Regulamento Geral de Proteção de
Dados (GDPR) ou com o direito de ser esquecido?”, argumenta Morozov. “Não estou
preocupado com a balcanização da Rede, pois, de qualquer forma, trata-se da
desvinculação da esfera econômica e digital controlada pelos Estados Unidos. Os
meios de comunicação, por exemplo, possuem regulações diferentes, mesmo dentro
da União Europeia --o que é aceitável na Noruega, pode não ser na Itália, e
vice-versa. Por isso não acho que devamos nos preocupar com discordâncias na esfera
digital só porque nossa concepção original da Internet é um mito de
universalismo impossível.”
“A Espanha sozinha não tem margem de manobra”, diz o coronel
Gomez de Ágreda, “o que temos, sim, que fazer na Europa é nos perguntar se
queremos pertencer a um dos sistemas que estão sendo montados ou ter o nosso
sistema separável”. De certa forma, a Europa já faz isso. O RGPD de 2018 separa
legalmente os usuários europeus daqueles do restante do mundo. “Podemos criar
uma Internet com nossas próprias regras”, conclui Gómez de Ágreda. “Um núcleo
de países com os quais compartilhamos uma série de valores.” E esclarece que
não se refere estritamente à União Europeia. Isso também começou a se romper.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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